Você pode até pensar que estudar é chato. Mas aprender é absolutamente lindo. Cientes de que o conhecimento empodera, três brasileiros se uniram para construir uma escola em Uganda e vivem uma intensa troca de aprendizados com o povo africano. Elisa Pires Martins, Suzy Shingaki e Marcelo Carvalho contam ao Razões para Acreditar o que os levou até essa jornada, quais são os desafios e as delícias de aproximar as culturas, tão diferentes e tão iguais.
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Sabemos de todas as mazelas socioeconômicas da África e, apesar de muitos de seus problemas serem frutos da colonização e exploração, tampouco queremos nos responsabilizar por eles. Ao invés de só observar e ressaltar o que há de ruim, por que não falar sobre as coisas boas e agir em prol de condições melhores? A partir desse olhar, nos conectamos com os jovens recém-formados que deram uma pausa em suas rotinas pós-acadêmicas para se dedicar ao próximo; a ouvir, a conhecer, a compartilhar, acolher e ajudar.
Tudo começou quando Elisa, voluntária na ONG local TORUWU, conheceu o vilarejo de Kikajjo, no leste da Uganda, em 2013. Criado o vínculo com os moradores, ela passou a se engajar na escola St. Mary’s, que está numa situação precária tanto estrutural quanto pedagógica. Há anos estão em busca de parcerias internacionais para financiar a construção de uma nova unidade.
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Oferecendo acesso à educação a 101 crianças, a instituição de ensino fundada pelo ONG corre sérios riscos de encerrar suas atividades. Em busca de solução, Elisa se comprometeu a realizar um trabalho com a comunidade escolar, dando voz a população local para que a escola seja um dos espaços de potência para as mudanças que buscam alcançar. É assim que os amigos Suzy e Marcelo também embarcaram nessa jornada pela transformação, há cerca de três meses.
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Segundo eles, existe um cuidado muito grande em não só oferecer recursos financeiros vindos de estrangeiros comovidos pela causa, mas de envolver a população nessa conquista. “Poderíamos estar em nossas casas, fazendo uma arrecadação para construir a nova escola, porém sabemos que o impacto que queremos é maior. Não estamos aqui para salvar ninguém. Queremos resgatar a potencialidade da comunidade para que eles vejam o quanto são capazes”, contou Suzy, em entrevista ao Razões para Acreditar.
Educação humanizada
Para manter de pé uma escola como St. Mary’s, os desafios vão muito além dos muros. O vilarejo enfrenta dificuldades financeiras devido a extrema pobreza, e de acesso a recursos básicos como a água potável, saúde, saneamento básico. Além disso, existem ainda os problemas sociais dos próprios alunos, como o trabalho infantil, a perda dos pais, doenças, casamento precoce, gravidez na adolescência, abusos sexuais e desnutrição. Enfim, injustiças que refletem no ensino e na sociedade como um todo. No Brasil, sentimos na pele o quanto o sistema educacional falho prejudica toda a nação, numa sucessão de erros que gera um efeito dominó irredutível.
O trabalho infantil é um dos maiores problemas de países subdesenvolvidos. A África representa 45% dos dados mundiais. Na casa onde estão, Suzy, Marcelo e Elisa compartilham as tarefas domésticas, mas ao questionar uma menina de 14 anos que mora com eles, tiveram uma resposta que mostrou a gravidade da situação. “Quando perguntamos se achava que trabalhava muito e se gostaria de ser livre para escolher viver de outra forma, ela respondeu que sem trabalho não é livre. Essas falas nos mostram a complexidade do sistema, como as coisas estão enraizadas e como temos um longo caminho a percorrer na defesa dos direitos humanos”.
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Cientes de que a chave para a mudança vem, especialmente, da nova geração, este foi o foco dos voluntários. “A educação é um investimento a longo prazo que pode realmente trazer um impacto positivo nessa comunidade. As crianças são o futuro da geração e serão os verdadeiros agentes de transformação aqui”, pontuou Suzy.
Acompanhando o dia a dia em sala de aula, substituindo professores quando necessário e propondo novas maneiras de ensinar, os brasileiros atuam como facilitadores, especialmente em termos de diálogo. Percebendo a hierarquização entre educador e aluno, a proposta sugerida pelos jovens vai de encontro com a criação de laços. “Um de nossos objetivos é aproximar e humanizar a relação dos professores com as crianças e famílias. Estamos incentivando professores (as) a visitar as casas das famílias dessas crianças, a fim de criar relações de confiança e empatia. Esse vínculo tem uma grande influência no processo de aprendizagem. Queremos mostrar que é possível ensinar com amor, sem agressões físicas ou psicológicas, pensar em formas criativas e alternativas de ensinar em forma de troca e não autoritária”.
Além de trabalhar em cima de questões educacionais e de convívio, o trio também se envolve em treinamentos esportivos, conscientizam famílias sobre doenças, fazem acompanhamento do peso e crescimento dos alunos e viabilizam formas de levar água potável para a escola.
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Aprendizados além da escola
Uma das coisas mais bacanas da educação e do contato com novas culturas é o legado que fica dentro de cada pessoa. Um novo mundo se abre dentro de nós, rompendo fronteiras, preconceitos e paradigmas. Do lado de cá, quase não somos capazes de perceber a nossa proximidade com o continente africano. “Infelizmente, não valorizamos ou reconhecemos as raízes africanas da nossa nação. Sabemos exatamente a região de nossas descendências europeias ou asiáticas, mas as africanas, representada por grande parte da população, não sabemos. Os resquícios dessa história de violações, a população negra brasileira paga até hoje”, explicou Suzy.
Só de notar esse distanciamento enorme, já existe um aprendizado, mesmo que subjetivo. E há uma troca rica de informações que proporcionam uma pequena grande revolução. Mas, antes das transformações acontecerem, é preciso conhecer a fundo a comunidade. “As lições que aprendemos relacionados com o nosso cotidiano, que podem parecer simples e bobos, mas são essenciais e influenciam diretamente o projeto, já que queremos vivenciar tudo ao máximo para compreender as questões do vilarejo”. Segundo os jovens, os ugandenses ainda têm discursos pautados na ideologia de supremacia branca, com um terrível complexo de inferioridade que os fazem acreditar no lado ocidental como modelo a ser seguido.
Apesar dessa visão um tanto deturpada, eles também se orgulham de suas origens e costumes. “A maior beleza do vilarejo de Kikajjo, com certeza é o espírito comunitário e colaborativo. As pessoas querem saber se todos estão bem, fazem favores umas às outras, querem ver seus vizinhos felizes, são tolerantes e compreensivos. União é a palavra que define essa comunidade”. Tal conceito se aplica dentro da filosofia Ubuntu, proveniente da sociedade africana, que coloca a comunhão como formação de um indivíduo, resumida na frase: eu sou porque nós somos.
Existe ainda uma forte relação com a comida, que vai desde à necessidade básica até o afeto pela prática. Eles compartilham o alimento, mesmo que seja escasso, e o veem como um ponto de união entre as pessoas. “As primeiras palavras em Luganda que aprendemos foi: matokê, emere, uêbale nho kufumba, que significam, respectivamente, banana (fazem uma espécie de purê), comida e ‘obrigado por cozinhar’”.
Além disso, a música, que se espalha por todos os lugares. A cultura está enraizada desde as tranças nos cabelos até à língua proferida, coisas que encantam quem é de fora. “Eles dizem que os bebês aprendem a dançar antes de andar e é verdade! Além disso, é inspirador ver o quanto ainda seguem tradições, respeitando a história que vem construindo.”
Depois de acompanhar uma senhora de 70 anos capinando e uma criança de 4 anos os ensinando a lavar a louça “do jeito certo”, os brasileiros notaram que ali, reclamar não é uma opção. “Elas podem passar por severas necessidades e conviver sem ter a consciência dos seus direitos violados, mas seus rostos estão longes de ser sofridos. Aquelas feições decorrentes de estresse, depressão ou apenas mau humor que as grandes cidades produzem, não são encontradas aqui”, contou Suzy.
Depois de revelar as lições cotidianas, que parecem tão pequeninas mas têm um valor imenso, Suzy pontuou que a cada despertar, novas descobertas surgem. “As aprendizagens são diárias, são coisas que com certeza não aprenderíamos em outro lugar. A sensação é que tivemos que recomeçar nossas vidas do zero, acho que não teve um dia que não aprendemos algo novo, e, normalmente são as crianças que têm paciência para nos ensinar tudo. Elas nos mostram que não podemos perder as esperanças em acreditar nas pessoas, num mundo melhor e mais justo”.
Até o momento, os três jovens já sabem como buscar e carregar a água para tomar banho e cozinhar; como economizar água para lavar louça; como espantar cobras da sala de aula com parafina; e até a não saírem sozinhos durante a noite por causa de crenças locais sobre famílias canibais, entre outras coisas.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”
O projeto Escola em Uganda vai levar, pelo menos, dois anos para ser concluído. Neste período, os três brasileiros abdicam de suas vidas pessoais para se dedicar ao trabalho. “Agora parece que nossa vida no Brasil é tão distante, vivemos um mundo paralelo aqui. Nossas motivações para realizar esse projeto são diversas, e o que nos move é esse espírito jovem, talvez quase ingênuo, de querer reparar erros do passado e olhar para aqueles que por tanto tem vem sido esquecidos, explorados e injustiçados. Foi uma escolha de cada um e todos os dias agradecemos por ter tido a oportunidade de vivenciar essa experiência.”, argumentou Suzy.
Ela aponta ainda que existe a incerteza de como serão suas vidas daqui para frente, junto com a confiança de que estão fazendo exatamente o que deveria ser feito. É um jogo de dualidades que permeia seus sentimentos. “Temos uma insegurança diante nossas impotências pessoais e uma expectativa de fazer uma diferença positiva na vida dessas pessoas. Uma preocupação de estar abrindo mão de estudos e trabalhos, como jovens da nossa idade normalmente fazem, mas um sentimento de realização ao contribuir por aquilo que realmente acreditamos. Um medo de fracassar e a coragem de querer enfrentar os obstáculos não importa qual seriam. Uma felicidade libertadora em se jogar para um grande desafio, e um sentimento de saudades antecipada das pessoas que tanto amamos”.
Com esse misto de sentimentos, resta apenas uma certeza: a construção de valores. Tanto para os voluntários quanto para a comunidade; dentro da escola e fora dela. Mesmo unindo esforços para captar recursos e realizar as demais tarefas cotidianas, Suzy aponta que a principal missão é resgatar a autoestima dos ugandenses. “As respostas estão com eles. Durante toda a vida foram forçados a crer que são incapazes, inferiores, que devem se conformar com essa realidade. O que queremos é mostrar que eles têm razões para acreditar neles mesmos para lutar por um final de história diferente”, concluiu.
Para contribuir com o projeto Escola em Uganda e saber mais, acesse o site oficial.
Todas as fotos: reprodução/Escola em Uganda
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