No último fim de semana aconteceu em São Paulo o seminário Fruto – diálogos do alimento, organizado pelo chefs Alex Atala e Felipe Ribenboim, que também é produtor cultural. Durante dois dias intensos de palestras (26 e 27 de janeiro) na Unibes Cultural, vimos o quanto é possível transformar o mundo através da alimentação de qualidade, que é não apenas uma necessidade básica, como um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Constituição do Brasil.
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Partindo da pergunta “Como alimentar (bem) um planeta inteiro?“, o evento convidou 30 pessoas ligadas à gastronomia, gestão pública, sustentabilidade, ação social, ciência e indústria para discutir estratégias,
alternativas e caminhos possíveis dentro da alimentação. Segundo os organizadores, o intuito é “consolidar o Brasil como principal celeiro desse debate, envolvendo pequenos produtores, a indústria de alimentos, criadores de hortas urbanas, comunidades indígenas, antropólogos, agrônomos e engenheiros genéticos”.
Mesmo rico em recursos, o Brasil corre risco de retornar ao mapa da fome. E a fome é um retrato da desigualdade. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, há comida em excesso no mundo. Então qual seria o problema, afinal? “A alimentação é uma ferramenta de transformação, política, econômica, social e cultural. Temos um problema de produção e distribuição, que são totalmente falhos. Enquanto a gente tiver poucas pessoas, mas muito poderosas, tomando conta disso, vai continuar havendo fome no mundo. Não tem nenhum problema técnico em relação a fome. É um problema puramente político. Se a gente quiser colocar comida na mesa de todo brasileiro, a gente coloca”, pontuou Bela Gil, uma das participantes do evento.
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O Razões para Acreditar esteve por lá no sábado para ouvir de perto quem está fazendo a diferença no mundo. Destacamos aqui alguns aprendizados que queremos compartilhar com vocês, para que entendam a importância da alimentação justa, saudável e acessível, seus impactos e consequências.
Entender quem somos
A neurocientista brasileira Suzana Herculano trouxe alguns fatos importantes sob a ótica do nosso processo evolutivo. Trazendo dados e gráficos, mostrou que compartilhamos muitas semelhanças com os animais, mas o que nos difere mesmo, em relação até mesmo com os primatas, é o simples fato de cozinhar. “Pré-processar a comida antes de levar a boca é um hábito nosso. O fogo fez evoluir ainda mais o processo de preparo, facilitando a digestão (…) não precisamos passar nove horas caçando, comendo e digerindo; ou até 18 horas, como é o caso dos elefantes. Isso nos deu tempo livre, nos leva a ter mais neurônios (86 bilhões) e a utilizá-los melhor”, disse.
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Aplicar a reeducação alimentar
A palestra da chef e nutricionista Bela Gil foi como uma bronca de mãe. Desde que se tornou conhecida pelo público, é ela que acende o debate sobre alimentação saudável, levantando essa bandeira com unhas e dentes. Para o debate, falou sobre agricultura familiar, que tem apenas 30% das terras cultivadas no Brasil. “Se a gente equilibrar esse número com o de latifúndios e monocultura, que pegam 70% das áreas agrícolas, conseguimos sair de novo do mapa da fome”. E sobre a nossa educação alimentar, que por vezes começa errada logo na infância.
“Dentro de uma alimentação saudável, a gente precisa entender quanto, quando e por que estamos consumindo cada alimento. Se você entende que o açúcar não faz tão bem assim, não vai tomar refrigerante todos os dias, mas também não precisa abrir mão da sua sobremesa predileta ou do docinho da sua avó. Vamos entender por que estamos comendo aquilo. O mesmo posso dizer sobre o consumo de carne, em que você entende os impactos ambientais de sua produção e diminui o seu consumo. Quanto temos consciência alimentar, fazemos escolhas melhores“.
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Ela, que comanda o projeto Bela Cozinha para inserir culinária em escolas públicas, acredita que a mudança deve começar pelo público mirim. “Quando as crianças crescem longe da terra e longe do fogão, essas atividades ligadas à cozinha assustam, ficam muito mais difíceis e complicadas. O ato de cozinhar é muito libertador. Eu sinto que quando o jovem aprende a cozinhar, ele se sente mais empoderado, independente, inclusive da indústria alimentícia, e acaba tendo uma relação mais intrínseca com a sua própria saúde. Quem cozinha faz escolhas mais saudáveis na hora de comer”, pontuou.
Conhecer os nossos direitos
A educadora social e gestora pública Rose Mendes colocou o dedo na ferida. Ao falar sobre suas experiências profissionais, entre elas vice-prefeita do município de São Carlos-SP e assessora da Diretoria de Coordenação e Articulação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), contou que é possível sim fazer a diferença em cargos públicos. Basta querer.
Ela cita minuciosamente os direitos previstos na Constituição Federal, começando pelo artigo 6º, que colocou a alimentação como direito social apenas em 2010, até chegar a RDC 49, norma aplicada pela Anvisa, que regula a atividade do microempreendedor individual, do empreendimento familiar rural e do empreendimento econômico solidário. Essa parcela não deve seguir os mesmos critérios da grande indústria, por motivos óbvios que vão desde a infraestrutura até o modo de produção.
“A RDC 49 foi uma revolução. Os setores de fiscalização não trabalhavam com a razoabilidade. Entre as normas, exigiam que o local tivesse, por exemplo, dois banheiros e 10 salas. É um absurdo isso quando você pensa em agricultura familiar, que às vezes mal tem um banheiro”.
Ela continua citando os problemas que impedem o acesso a uma alimentação saudável e justa. “O ministério não fala a língua do agricultor. As leis não são discutidas com a sociedade civil, para que a represente. Nossos municípios não têm saneamento básico. Não tratam o esgoto. Permitem que o cidadão viva dessa forma. A população negra é a que mais passa fome. A agricultura orgânica ainda não é acessível. Temos crianças que vai para a escola sem comer. Que a única refeição do dia é a merenda escolar. E ainda assim temos municípios que desviam o dinheiro da merenda“.
Ela finaliza dizendo sobre a importância de apoiar o legado cultural do Brasil, a inclusão social e produtiva, valorizar o que é artesanal, oriundo do pequeno produtor. “Quero que todos tenham uma avó como eu sou pra o meu neto. Porque todo mundo teve uma avó que sabia cozinhar.”
Notar que dá para mudar os processos
Para falar sobre a indústria alimentícia, que não vai deixar de existir da noite para o dia, o Coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas, Roberto Rodrigues, citou os desafios enfrentados atualmente, como as mudanças climáticas, que prejudicam a agricultura. “Temos dois principais desafios: aumentar a produção para alimentar o mundo e ser sustentável. A resposta está na tecnologia“.
Dessa forma, aproveita para citar o projeto da Embrapa chamado Sistema Integração Lavoura Pecuária, que consiste na rotação ou sucessão de atividades agrícolas e pecuárias numa mesma área, em épocas diferentes do ano. Segundo dados, isso aumenta a eficiência no uso de recursos naturais e evita o desmatamento de novas áreas para plantio, além de garantir a subsistência do produtor. A tecnologia aplicada diversifica os meios de produção num mesmo solo, que é tratado para a criação de animais ou o plantio. Roberto afirmou que atualmente há 14 milhões de hectares ocupados para esse propósito. “Não haverá paz enquanto houver fome. Podemos ser campeões mundiais da Segurança Alimentar. Portanto, campeões mundiais da paz”, concluiu.
Saber que com pouco se transforma muito
O surfista Jon Rose passou boa parte de sua vida ligado à água. E foi exatamente através dela que ele encontrou uma forma simples e muito eficaz de auxiliar o próximo. “Eu era um surfista que percebeu que as crianças de atualmente já estão melhores do que eu. Queria ajudar os lugares por onde passasse surfando. Durante um terremoto no Havaí, o edifício onde eu estava caiu. Por sorte, eu não estava lá e isso me ajudou a encontrar o meu propósito. Minha intenção é mostrar o poder do espírito e como uma coisa pode mudar muitas, muitas outras”.
Assim foi criada a Waves 4 Water, que permite que qualquer pessoa possa ajudar outras “no meio do caminho”. São filtros com custo de US$ 50 cada, que transformam água poluída em água potável, capazes de ajudar centenas de pessoas e comunidades a terem acesso a este recurso tão básico, porém por vezes limitado. Através da CSR – Corporative Sources Responsability – medida que visa a responsabilidade social de empresas, integra funcionários e até diretores com os moradores onde estão alocados. Assim mantém o projeto funcionando não apenas com recursos vindos das empresas parceiras, mas engajando as pessoas a fazerem a diferença.
Quem quiser ajudar da mesma forma conta com o apoio e instruções da iniciativa humanitária. É possível comprar filtros, levantar fundos para uma causa em algum lugar do mundo, fazer uma doação ou integrar um projeto já em andamento.
Quem dividiu o painel com ele foi Nina Braga, do Instituto E, focado na pesquisa de materiais sustentáveis para serem utilizados na indústria da moda, uma das maiores responsáveis pela poluição ambiental. “São muitos os desafios. No Bom Retiro (em SP) tem descarte diário de 12 toneladas de resíduos têxteis. Fora isso, há ainda as denúncias de trabalho escravo e questões de saúde pública, já que 25% dos agrotóxicos são usados na lavoura de algodão convencional e 20% da poluição da água vem do setor têxtil”, apontou.
Através do instituto, cria medidas para reaproveitar materiais e trouxe como exemplo a pele do peixe Pirarucu, que ajuda a gerar renda extra para os pescadores do Norte do Brasil. Ou seja, além de venderem o peixe, que é sua forma de sustento, conseguem vender também a pele que, supostamente, iria para o lixo. Ao todo, 13 famílias são beneficiadas com o manejo regulamentado. Na moda, o couro do peixe é aplicado na fabricação de bolsas, sapatos e cintos. “Questionem o valor de um produto sustentável. Será que não está na hora de calcular as externalidades e aplicar no preço da roupa? Na Finlândia as pessoas levam isso em consideração. Ver o ato de consumo de qualquer bem como um ato de cidadania. Será que não está na hora da gente questionar? Não vamos parar de consumir, vamos fazer escolhas“.
Ver, na prática, a comida como elemento cultural
Assim como Rose e Bela mencionaram, enxergar a comida como elemento cultural é uma das ferramentas para entender sua importância. Para ilustrar como o Peru consegue manter esse legado tão vivo, o ex-Ministro da Agricultura do Peru, Luis Ginocchio Balcázar trouxe inúmeras iniciativas que foram feitas ao longo dos anos, incluindo a valorização do pequeno produtor rural. “A melhor demonstração é como vemos o produtor. Desde a alimentação surgem grupo que trabalham e questionam diversos fatores, como o resgate da identidade nacional. A comida é uma expressão da cultura de cada povo ou etnia. Inclui valores, crenças, práticas, linguagens, afetos e conhecimentos formados com o tempo“.
Há pouca terra agrícola no país, porém muito produtiva. “Com a quantidade de pessoas no Peru, creio que sempre teremos produtos processados. A questão é como será processado esse produto”, indagou. E é essa reflexão que ele deixa pairando no ar.
Depois de tantos exemplos bonitos e aprendizados, podemos ver que a alimentação vai muito além do que se tem no prato. E é uma causa nossa, de todas as pessoas do mundo, passando por atitudes grandes e pequenas. Começando pela nossa própria casa. Não há vergonha nenhuma em esquentar o umbigo no fogão. Vergonha mesmo é não saber fritar um ovo ou se recusar a manejar, cheirar, provar e sentir o prazer de fazer a sua própria comida.
A partir do momento em que nos interessamos pela alimentação, a verdadeira e não os enlatados, conseguimos compreender processos produtivos, e o melhor de tudo, fazer escolhas. Ter o poder de escolher o que comer, de priorizar orgânicos no lugar de agrotóxicos, de colher na sua própria hortinha, por exemplo, de aprender a gostar do que a terra nos dá, ajuda não só o nosso corpo a ter um sustento melhor, como também a recusar o que não nos faz tão bem. 🙂
Crédito das fotos: Brunella Nunes
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